sábado, janeiro 04, 2014

4 Janeiro 2014

Publicada por Um Dia à Vez

O tempo passa, o tempo passa e eu aqui permaneço. A lucidez foge-me, a realidade foge-me, tudo me foge. Estou outra vez à beira de dar em louco. Chego já ao ponto de ter saudades de Berg, Greb e do Rui.

Visto que não tenho nada para matar o tempo, e que segundo a minha percepção estou aqui enclausurado há meses, talvez anos, decidi começar a pensar em planos de fuga para me evadir deste local maldito.

Tudo começou como uma brincadeira da minha mente para ocupar o facto de nada fazer durante o dia, mas e se for possível? E se houver uma maneira de escapar a este pesadelo?


Vou começar a tomar notas sempre que me depare com algo que seja relevante para uma suposta fuga.   

A.Redol, Lisboa

sexta-feira, janeiro 03, 2014

3 Janeiro 2014

Publicada por Um Dia à Vez

Ao contrário do que Beatriz disse ontem, ela hoje não apareceu. Ainda bem, porque não tinha qualquer poema para ela.

O que aconteceu foi um voltar aos velhos tempos. Acordei sozinho, envolto na pretensa tranquilidade branca do meu quarto, sem que vivalma viesse até ao meu quarto. Nenhum médico nem nenhuma enfermeira. Tudo o que recebi foi a característica folha branca para acrescentar ao meu diário, vinda da fresta por baixo da porta da minha cela.

Será que de algum modo os responsáveis desta prisão sabem da simpatia que Beatriz parece nutrir por mim? E desse modo impediram-na de vir até à minha divisão?


Odeio estes dias em que a minha única companhia é o meu cérebro… 

Carlos Costa, Sintra

quinta-feira, janeiro 02, 2014

2 Janeiro 2014

Publicada por Um Dia à Vez

A cada dia que passa, este espaço parece sufocar-me mais. É como se todo o branco e a pureza que lhe está associada contrastassem com toda a obscuridade que me consome.

A enfermeira de cintura adelgaçante deu-me, hoje, mais uma folha de papel. Antes de o fazer esteve algum tempo a fazer conversa. Com um sorriso que lhe pareceu iluminar os olhos, disse-me que se chamava Beatriz e perguntou-me como tinha sido o meu primeiro dia do ano. Confidenciou, com um tom descrente que contradizia a assertividade das suas palavras, que há quem creia que, o que acontece no primeiro dia do ano se repete ao longo de todo o ano. No meu caso, espero que assim não seja. Se todos os dias forem como o de ontem, os fantasmas tão reais que me seguem aparecerão a cada novo dia. Esta realidade, se vivida dia após dia acabará por me fazer sucumbir. Não soube o que responder à enfermeira Beatriz. Se lhe contar o que senti, o que pensei e vivi, o mais provável é que a assuste de tal modo que a minha medicação seja aumentada de forma que entre numa outra dimensão negra e vazia, desprovida de qualquer coisa. Não sei se será melhor ou pior, mas Beatriz parece tão crente na vida, nos seus ideias e na sua influência profissional, que não quero ser eu a destruir tudo isso.

Face ao meu silêncio, Beatriz introduziu um novo tema de conversa. Ou de monólogo, já que eu pouco mais fazia do que olhá-la e perder-me, entre as suas palavras, nos meus muitos pensamentos e divagações. Disse-me com um ar simpático que não se tinha esquecido da promessa que lhe havia feito. Escrever-lhe um poema.
Por mais que pense, não sei sobre o que escrever. Juro que tentei escrever algo sobre os seus olhos complacentes, de um verde que a muitos decerto despoletaria inúmeras estrofes. Mas não consegui. Talvez noutros tempos, talvez noutra vida. Naquele outro Francisco que cursou História porque admirava os grandes feitos dos antepassados e tinha uma sede de conhecimento desmedida, acerca do passado. Hoje, não consigo lidar com a minha própria história ou construí-la com exatidão. E o meu próprio passado é algo que temo, que todos temem ao conhecer, que a todos afasta. Não sou mais esse Francisco e não sei quem é este novo Francisco, consumido por si mesmo e por tudo o que me assombra.

A enfermeira parou de falar e isso despertou a minha atenção. Prometeu que voltaria amanhã, com outra folha e que esperava que nela estivesse o poema. Não lhe disse nada. Nem sequer sei o que acontecerá entretanto. Nem sequer sei para onde me levará tudo o que sou amanhã.


Joana Gomes, Porto

quarta-feira, janeiro 01, 2014

1 Janeiro 2014

Publicada por Um Dia à Vez

“Os ratos vão-me devorar”. Vi-me obrigado a recorrer ao suborno para obter um pedaço de papel e uma caneta, e já agora um cigarro, que não fiz mal a ninguém, acho eu. Preciso de me escrever. Prometi à enfermeira da silhueta adelgaçante um poema. Foi simpática e desejou-me um próspero 2014. A sua ingenuidade quase que me comove. Sabia lá eu que estávamos no primeiro dia do ano. Gosta de poesia, ela. No que me fui meter, eu que só sei escrever para mim.

A tia Elvira visitou-me. “Podes mudar a tua morada para a do centro de reabilitação, Fernando”, disse-me com ar derrotado de quem já pouco lhe é, como se dá. “Os ratos vão-me devorar”. Desde que o meu pai morreu que escolhi esta sina. A verdade é que prefiro o estado irreal das coisas. A mentira faz-me planar em felicidade utópica. E quase que morro para esse momento. “Os ratos vão-me devorar”. Disse-me que tenho estado em constante delírio na última semana. Disse-me que profiro o teu nome, noite e dia, noite e dia. Disse-me que em sonhos te matei. Tu és o meu delírio, de facto.

Quero flashar em viagem. Uma cápsula. Só uma. Vá lá! Não é pedir muito, pois não? Só quero estender o meu corpo cansado nos intervalos da erva fresca. Quero atrever-me em visões de sonhos ainda não sonhados. “Os ratos vão-me devorar”. Mesmo que a minha vida seja uma jangada sem rumo, de vaga em vaga, de ressaca em ressaca. Estou a escrever-me para ti. Estou a escrever-te, enquanto pelo corpo sinto uma tontura que me inunda o coração de medo, ausência e saudade. Estou sempre a correr para ti sem te conseguir alcançar. Merda! O pouco oxigénio da sala branca comeu-me o cigarro, e eu só tinha dado três passas. “Os ratos vão-me devorar”.

Veio-me do fundo da idade o dia em que nos conhecemos. Mas tudo isso já se passou há muito tempo, noutro lugar e noutro corpo que não este. Escrevo-te ainda lúcido, ignorando o facto de chegar vivo ou morto ao fim da noite. Dei por mim a descobrir que a morte veste o mesmo número que eu. A morte. Não é mais do que uma passagem de nós, um alívio talvez. A minha memória está cheia de bolor. A minha memória, memória, memória. Tu apodreceste-a. “Os ratos vão-me devorar”.
Estás em pânico também, não estás? Sobrevives na sombra da tua infância, da tua adolescência e do medo de não conseguires por fim viver no esterco deste país. A loucura assola-nos, e ironicamente foi ela que sempre nos uniu. Esta é a última vez que penso em ti, num nós. Preparo-me para a última viagem às terras imaginadas. Dizem que só lá se pode descansar da vida e da morte. Vou com as veias empoladas. Talvez não valha a pena, mas vou. Tenho de encontrar o lugar certo, ou o errado, para o meu amor. Ainda assim um lugar. Queres vir comigo? Aproveita-me agora. Aproveita o meu corpo, aproveita antes que eu o devore.

Catarina Nobre, Lisboa

terça-feira, dezembro 31, 2013

31 Dezembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

Hoje é o ultimo dia do ano, e por algum motivo acordo bem mais lúcido do que em qualquer
outro dia que tenha passado nos últimos tempos. Noto agora que os dias têm passado por mim
e não eu por eles.

Continuo num espaço completamente branco, digno de paz, mas tudo à minha volta me inquieta. Tenho um espelho que me reflete, mas sinceramente não sou eu que vejo. Ali, mesmo à minha frente está um corpo alterado, diferente daquilo que estou habituado a reconhecer, aquilo que ainda me lembro do que eu era.
O corpo magro, que agora tenho, pesa-me. As forças escasseiam, mas a vontade de perceber
onde estou e de poder sair deste lugar é maior.

Sinto que acordei de uma noite longa, em que excessos foram cometidos e não devem ser repetidos. Talvez tenha exagerado mesmo, pois não me lembro de nada do que se tenha passado. Por vezes tenho vagas memórias de anões e pinguins que me acompanharam em aventuras, mas nada disso faz sentido. Eu ainda consigo ser racional e perceber o que é realidade e o que não faz sentido. Quero memórias reais, de coisas capazes de terem acontecido e fazerem sentido nesta minha nova vida neste espaço branco que me acolheu,
mas não me deixa escapar.

Lá fora ouço passos de um lado para o outro, de um lado para o outro, e assim sucessivamente. Uma enorme agitação envolvida em risos e gritos de excitação. Estão nitidamente mais felizes do que eu, o que não é de estranhar. Recordo-me que nunca fui uma pessoa muito risonha ou até mesmo feliz. "A vida não me corre bem." A velha frase em que tão bem me aplico.

Lembro-me de novo, hoje é o último dia do ano. Lá fora devem estar esperançosos que um melhor ano virá, que objectivos e desejos se concretizaram. Cá dentro, eu já só queria ver um pouco do fogo de artificio que ouço, mas a única coisa que vejo, e que é algo semelhante, são clarões. Clarões de quem está fraco e de ressaca. Estou deitado num chão gelado, tremo, não de frio, mas sim de fraqueza. Sou um corpo
estendido que precisa de mais do que ser alimentado para recuperar. De todas as vezes que ouvia a música "Ratos", dos Linda Martini, questionava-me o que queriam eles dizer com a frase: "Os ratos vão-me
devorar". Hoje percebo, ou melhor, hoje sinto-o.

Beatriz Patachão
Lisboa

segunda-feira, dezembro 30, 2013

30 Dezembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

Continuavamos a correr o mais rápido que podíamos, o Rui movia-se a uma velocidade estonteante, e aos poucos comecei a perdê-lo de vista, a sirene soava cada vez mais alto... Continuei a correr, sozinho, Rui desaparecera no horizonte. Um horizonte cada vez mais desprovido de árvores, continuei o mais rápido que pude, até perceber que não havia mais por onde continuar, o caminho dava a um penhasco, a velocidade a que eu corria era tal que não tive tempo de travar e foi então que o chão desapareceu, e estava em queda livre... Acordei num sobressalto, completamente transpirado, um imenso branco cegou-me os olhos.       

Estava outra vez no quarto branco, todo almofadado. Branco. Todo Almofadado. O lugar de onde o Berg, Greb e Rui me resgataram. Tudo estava igual, intacto. O espelho continuava no sítio. Olhei de perto, tentando perceber o que de errado se tinha passado. Quando me voltei, dei um berro de surpresa, o homem, aquele homem, que ainda à horas pareceu-me ter visto, estava mesmo à minha frente!
- Andaste a viajar neste últimos dias, não é verdade?- disse-me
- Han? Não percebo
            O homem soltou uma gargalhada e proferiu: “Está a chegar o dia em que irás perceber.”

André Carvalho

Vieira do Minho

domingo, dezembro 29, 2013

29 Dezembro 2013

Publicada por Um Dia à Vez

Voltei a sentir-me a viajar, voltei a ver aquele homem, e os meus olhos fecharam-se de novo. Uns clarões de luz invadiram-me a visão mesmo com as pálpebras fechadas! Quando os meus olhos finalmente se adaptaram à luz comecei a ter alguma nitidez na visão, daquele homem de bata! Pareceu-me reconhecê-lo… Os meus olhos lutavam para se manterem firmes e eu lutava para os manter abertos, até que foi demais… Fechei os olhos e quando abri voltei a ver Rui à minha frente batendo-me na  cara:
-Desmaiaste pá! O que é que se passa contigo? Estás doente?

Ele ia continuar a falar, mas uma sirene começou a tocar muito alto obrigando os pinguins a correrem atarantados e a tentarem escapar. O cenário era tortuoso, geleiras a voar, pinguins feridos! Rui começou a correr e eu acompanhei-o! Quando finalmente chegámos a uma zona segura, Rui explicou-me:
-Foi um ataque dos Pandónios, acontecem dois por ano… Não esperávamos que nenhum fosse hoje!
-Mas o que são eles? O que foi isto?

-Rui ia começar a falar, mas outra sirene obrigou-nos a todos a recomeçar a correr.

João F. Sousa, Aveiro